jornalismo, cultura e a opinião que ninguém pediu

29.11.06

BAIXIO DAS BESTAS: PERNAMBUCO FALANDO PARA O MUNDO
O filme campeão do Festival de Cinema de Brasília foi “Baixio das Bestas”, do pernambucano Cláudio Assis. Na hora da premiação, levou mais vaias que aplausos. Teve gente que achou trash, sórdido, que fetichiza a violência. A imprensa ficou com “polêmico”. É tudo isso, mas antes de serem atributos do filme, são atributos da realidade que o filme quer mostrar, a Zona da Mata de Pernambuco, onde se vive de cortar cana, beber, tocar maracatu e putaria. Putaria da grossa e sem limites.

O filme abre com um velho de bengala postando a filha (15, 14, 12 anos?) em pé atrás do postos de gasolina. Desnuda a menina e senta ao seu lado. A câmera abre e mostra a platéia de homens admirando a menina, nua, alguns se masturbando. Suas vidas cruzam com cortadores de cana, tocadores de maracatu, prostitutas e boyzinhos putaneiros. Personagens típicos do interior de Pernambuco. Típicos porque existem, aos montes. Os diálogos, em planos longos, dão a exata dimensão dos personagens:

“O movimento tá bom hoje?” – o velho, perguntando à dona do posto antes iniciar a apresentação da menina.

“Cadê a manteiga? Eu quero é cu!” – Cícero, um dos boyzinhos, no prostíbulo.

“Ele é pobre, mas é feliz” – tocador de maracatu, sobre o personagem que trabalha cavando fossa.

“A pobreza vai socializar o mundo.” – Everardo, um dos boyzinhos.

“Você não vai virar uma rampeira de beira de estrada como a sua mãe!” – o velho, reprovando a filha após ela ter sido estuprada.

“O bom do cinema é que a gente pode fazer o que a gente quiser.” – Everardo.


Ressalte-se, diálogos em perfeito sotaque e vocabulário pernambucanos. Nada forçado, nada esteriotipado. Caio Blat fala exatamente como fala qualquer garoto pernambucano. Merecia um Oscar só pelo sotaque, muitíssimo bem-trabalhado.

A cena que é a menina dos olhos de Cláudio Assis mostra um cortador de cana dobrando a cana para beber o suco. Uma cena que não tem nada a ver com a história, mas mostra como é o dia-a-dia na Zona da Mata. Há muitas dessas cenas de cotidiano, que mostram qual o contexto e quem são os personagens (como a mãe de Cícero que sempre o acorda no sofá da sala, sofrendo de ressaca).

E as cenas que chocaram tanto assim o público? Everardo chutando a cabeça de uma puta que não queria participar da suruba, a menina desnuda atrás do posto, os boyzinhos batendo punheta, bebendo e fumando maconha, o estupro da menina.

Cláudio Assis se mostrou surpreso com tantas críticas às imagens fortes do filme. “Estão matando gente todo dia. Isso passa às dez da manhã na TV e ninguém reage. Ninguém reage! E agora vem dizer que meu filme é violento?!? Tenha paciência!"
Cláudio Assis mostra o desenrolar de sua história, com tudo o que ela tem de violento e chocante. Se não mostrasse, teria que fazer outro filme. Seu maior mérito foi fazer um filme real, sem concessões, sem exageros, sem julgamentos. É demais para o público? Está nos cinemas o filme “Happy Feet – O Pingüim”. Agora, não caia na besteira de viajar de carro pelo sertão pernambucano.

7.11.06

SADDAM, O CONDENADO


Artigo fundamental de Robert Fisk, publicado na Folha de S. Paulo:
"Assim, o antigo aliado dos Estados Unidos foi sentenciado à morte por crimes cometidos quando era o melhor amigo de Washington no mundo árabe. Os americanos sabiam tudo sobre suas atrocidades. Mas ontem lá estávamos nós, declarando que a sentença representava "um grande dia para o Iraque", segundo a Casa Branca.

O desastroso inferno que infligimos ao Iraque é tão horrível que nem mesmo podemos sustentar essa afirmação. A vida é pior, agora. Ou melhor, a morte é um destino mais freqüente para mais iraquianos do que era no caso dos curdos e xiitas nos tempos de Saddam. Por isso, não podemos alegar superioridade moral nenhuma. Nós apenas praticamos abusos sexuais contra prisioneiros, assassinamos alguns suspeitos e praticamos alguns estupros, além de termos invadido ilegalmente um país, o que custou ao Iraque apenas 30 mil vidas, nos cálculos de George W. Bush.

Saddam era muito pior. Não seremos levados a julgamento. Não seremos enforcados. "Allahu Akbar", bradou o homem execrável. "Deus é grande." Não deveria nos surpreender. Foi ele que insistiu que essas palavras fossem inscritas na bandeira iraquiana, a mesma bandeira que hoje tremula sobre o palácio do governo que o condenou depois de um julgamento no qual o genocida iraquiano foi formalmente proibido de descrever sua relação com Donald Rumsfeld, hoje secretário da Defesa de George W. Bush. Lembram-se daquele aperto de mão? E Saddam tampouco pôde falar do apoio que recebeu de George Bush pai.

Eis algumas das coisas sobre as quais Saddam não pôde depor: vendas de produtos químicos, tão repulsiva e que tanto incomodava Bush filho e lorde Blair de Kut al Amara quando decidiram depor Saddam em 2003 -ou terá sido 2002? Em 25 de maio de 1994, a Comissão de Assuntos Bancários, Habitação e Assuntos Urbanos do Senado americano divulgou relatório sobre as exportações de produtos químicos e biológicos de possível uso bélico pelos Estados Unidos ao Iraque.

Entendo perfeitamente que não era possível permitir que Saddam falasse a esse respeito. John Reid, secretário do Interior britânico, disse que o enforcamento de Saddam era "a decisão soberana de um país soberano". Graças a Deus ele não citou as 200 mil libras em tiodiglicol, um dos dois componentes do gás mostarda, que exportamos ao Iraque em 1988, e outras 50 mil libras da mesma substância vendidas em 1989.

Também enviamos cloreto de tiodiglicol ao Iraque em 1988, ao preço de apenas 26 mil libras. Eu sei que esse componente poderia ser usado para produzir tinta para esferográficas e corantes para tecidos. Mas trata-se do mesmo país, o Reino Unido, que oito anos depois se recusaria a vender vacinas contra difteria às crianças iraquianas, sob a alegação de que elas poderiam ser usadas para produzir armas de destruição em massa.

Mas agora demos ao povo iraquiano pão e circo, o enforcamento de Saddam. Impusemos justiça ao homem cujo país invadimos e fizemos se dividir. O estranho é que o Iraque hoje está tomado por assassinos, estupradores e torturadores.

Muitos trabalham para o atual governo, que apoiamos. Eles não serão julgados. Nem enforcados. Essa é a extensão do nosso cinismo. Da nossa vergonha.

Em algum momento a justiça e a hipocrisia já estiveram unidas de forma tão obscena?"