jornalismo, cultura e a opinião que ninguém pediu

7.11.06

SADDAM, O CONDENADO


Artigo fundamental de Robert Fisk, publicado na Folha de S. Paulo:
"Assim, o antigo aliado dos Estados Unidos foi sentenciado à morte por crimes cometidos quando era o melhor amigo de Washington no mundo árabe. Os americanos sabiam tudo sobre suas atrocidades. Mas ontem lá estávamos nós, declarando que a sentença representava "um grande dia para o Iraque", segundo a Casa Branca.

O desastroso inferno que infligimos ao Iraque é tão horrível que nem mesmo podemos sustentar essa afirmação. A vida é pior, agora. Ou melhor, a morte é um destino mais freqüente para mais iraquianos do que era no caso dos curdos e xiitas nos tempos de Saddam. Por isso, não podemos alegar superioridade moral nenhuma. Nós apenas praticamos abusos sexuais contra prisioneiros, assassinamos alguns suspeitos e praticamos alguns estupros, além de termos invadido ilegalmente um país, o que custou ao Iraque apenas 30 mil vidas, nos cálculos de George W. Bush.

Saddam era muito pior. Não seremos levados a julgamento. Não seremos enforcados. "Allahu Akbar", bradou o homem execrável. "Deus é grande." Não deveria nos surpreender. Foi ele que insistiu que essas palavras fossem inscritas na bandeira iraquiana, a mesma bandeira que hoje tremula sobre o palácio do governo que o condenou depois de um julgamento no qual o genocida iraquiano foi formalmente proibido de descrever sua relação com Donald Rumsfeld, hoje secretário da Defesa de George W. Bush. Lembram-se daquele aperto de mão? E Saddam tampouco pôde falar do apoio que recebeu de George Bush pai.

Eis algumas das coisas sobre as quais Saddam não pôde depor: vendas de produtos químicos, tão repulsiva e que tanto incomodava Bush filho e lorde Blair de Kut al Amara quando decidiram depor Saddam em 2003 -ou terá sido 2002? Em 25 de maio de 1994, a Comissão de Assuntos Bancários, Habitação e Assuntos Urbanos do Senado americano divulgou relatório sobre as exportações de produtos químicos e biológicos de possível uso bélico pelos Estados Unidos ao Iraque.

Entendo perfeitamente que não era possível permitir que Saddam falasse a esse respeito. John Reid, secretário do Interior britânico, disse que o enforcamento de Saddam era "a decisão soberana de um país soberano". Graças a Deus ele não citou as 200 mil libras em tiodiglicol, um dos dois componentes do gás mostarda, que exportamos ao Iraque em 1988, e outras 50 mil libras da mesma substância vendidas em 1989.

Também enviamos cloreto de tiodiglicol ao Iraque em 1988, ao preço de apenas 26 mil libras. Eu sei que esse componente poderia ser usado para produzir tinta para esferográficas e corantes para tecidos. Mas trata-se do mesmo país, o Reino Unido, que oito anos depois se recusaria a vender vacinas contra difteria às crianças iraquianas, sob a alegação de que elas poderiam ser usadas para produzir armas de destruição em massa.

Mas agora demos ao povo iraquiano pão e circo, o enforcamento de Saddam. Impusemos justiça ao homem cujo país invadimos e fizemos se dividir. O estranho é que o Iraque hoje está tomado por assassinos, estupradores e torturadores.

Muitos trabalham para o atual governo, que apoiamos. Eles não serão julgados. Nem enforcados. Essa é a extensão do nosso cinismo. Da nossa vergonha.

Em algum momento a justiça e a hipocrisia já estiveram unidas de forma tão obscena?"

Nenhum comentário: